Meritocracia do amor e outras ficções monogâmicas

Giovanna Caleiro
5 min readJan 31, 2022

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Uma das coisas mais importantes, se não a mais importante, que aprendi desde que comecei a pesquisar e viver não monogamia foi a ideia de que “ciúme” é um termo usado para abarcar muitos sentimentos, e que fazia mais sentido tentar identificá-los e cuidar de cada um deles do que botar tudo na conta do ciúme e tentar legitimar ou ignorar, na marra, a ilusão de controle que vem com ele.

Acontece que, há alguns meses, venho lidando com um desdobramento do meu ciúme para o qual eu não conseguia dar nome e, muito por causa disso, não conseguia ver muita saída. Foi só na última semana que consegui identificá-lo e nomeá-lo gentilmente de meritocracia do amor, e entender porque fazia tão pouco sentido aplicar essa lógica num contexto de não monogamia política.

Percebi que são duas as origens desse sentimento dentro de mim: a construção capitalista-monogâmica do amor como um bem de consumo escasso e a ideia que recai principalmente sobre mulheres e minorias em geral de se sacrificar por amor. Ficção e realidade se misturam na construção de histórias de mulheres que deixaram de lado seus desenvolvimentos individuais para se dedicarem ao desenvolvimento de suas famílias e de seus parceiros, e não raro essas mesmas mulheres são traídas, abandonadas ou deixadas sem muito rumo depois de uma ruptura brusca. Para além das narrativas heterocentradas, é comum ouvir histórias de pessoas que, em um relacionamento romântico-sexual, sentem que abandonaram uma grande parte de suas próprias vidas em nome do crescimento daquela relação ou, ainda, que se sentem quase lesadas após um término de relacionamento com alguém a quem elas dedicaram tanto empenho. Mas o amor não é uma relação entre investimento e lucro.

Eu fazia uma lista para mim mesma de tudo o que ele devia a mim. […] Eu tinha
tirado um tempo que era meu para somá-lo ao seu e fazê-lo então mais potente. Eu tinha posto de lado as minhas aspirações para acompanhar as suas. Para cada crise de desconforto dele, eu tinha estancado as minhas crises para poder confortá-lo. Eu tinha me perdido nos seus minutos, nas suas horas, para que ele se concentrasse. Eu tinha cuidado da casa, da comida, dos filhos, eu tinha me ocupado de todas as chatices da sobrevivência do cotidiano, enquanto ele escalava teimosamente o declive da nossa origem sem privilégios. E agora, agora ele me largava carregando consigo todo aquele tempo, toda aquela energia, todos aqueles sacrifícios que eu fizera por ele, de uma hora para outra, para gozar os frutos com outra, uma estranha que não tinha mexido um dedo para pari-lo, nutri-lo e fazer com que ele se tornasse o que era. Parecia-me uma ação tão injusta, um comportamento tão ofensivo, que eu não podia acreditar. […]

(Dias de abandono, Elena Ferrante, tradução de Francesca Cricelli. Biblioteca Azul, 2016.)

É importante explicar que aqui estou me referindo ao amor, mesmo. Afinal, já diria Federici: que as mulheres assumam os trabalhos de cuidado em nome de um casamento não damos o nome de amor, e sim de trabalho não remunerado. Aqui me refiro ao trabalho emocional, presente em qualquer relação, em maior ou menor grau. Numa lógica capitalista, é natural pensar que, depois de tanto trabalho, investimento e tempo, os desdobramentos deveriam ser fidelidade, devoção e exclusividade. Eu fiz esse investimento, portanto os frutos são meus. Pensando assim, é frustrante constatar que outras pessoas estariam desfrutando de algo que, teoricamente, é nosso por direito.

Se me dedico a uma relação e, a partir dela, desenvolvo pensamentos e práticas que fazem com que eu me relacione de maneira mais saudável, todas as pessoas com quem eu me relacionar a partir disso, além das que já estão em minha vida, vão se beneficiar dessa melhora. Esperar que certas ações, pensamentos, sentimentos ou discussões estejam restritas a qualquer relação é agir na lógica da meritocracia, e não é desse jeito que eu desejo viver os meus afetos.

A não monogamia política nos convida a pensar formas de relacionamento que fujam à ideia de núcleo e abracem a coletividade. Que possamos estender esse pensamento não só às práticas afetivas e sexuais, mas a uma construção coletiva de saúde mental que passe pela descentralização das questões resolvidas “em casal”. Que qualquer ideia do que faz bem e do que faz sentido possa abraçar as novas e velhas pessoas que fazem parte de nossa vida, sem que cobremos ou nos sintamos cobrades de mais ou menos merecimento por termos feito parte ou não do desenvolvimento dela. Que possamos nos desapegar da ideia do amor como sacrifício, como merecimento ou como investimento: ninguém merece ser mais ou menos amade, porque não se trata de uma competição por um bem escasso. O amor é abundante e, quanto mais trabalhamos as questões que nos são problemáticas em sua práticas, mais somos capazes de dar e receber amor. Se abandonarmos a ideia de que os outros precisariam merecer o amor através de um trabalho emocional extenuante, podemos estendê-la também para nós e entender o trabalho do amor menos como um sacrifício e mais como uma construção coletiva.

Imagine quão mais fácil seria aprender como amar se começássemos com uma definição partilhada. A palavra “amor” é um substantivo, mas a maioria dos mais perspicazes teóricos dedicados ao tema reconhece que todos amaríamos melhor se pensássemos o amor como uma ação. Passei anos procurando alguma definição significativa da palavra “amor” e fiquei profundamente aliviada quando encontrei uma no clássico de autoajuda do psiquiatra M. Scott Peck, A trilha menos percorrida: uma nova visão da psicologia sobre o amor, os valores tradicionais e o crescimento espiritual, publicado originalmente em 1978. Reverberando o trabalho de Erich Fromm, ele define o amor como “a vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa”. Para desenvolver a explicação, ele continua: “O amor é o que o amor faz. Amar é um ato da vontade — isto é, tanto uma intenção quanto uma ação. A vontade também implica escolha. Nós não temos que amar. Escolhemos amar”. Uma vez que a escolha deve ser feita para alimentar o crescimento, essa definição se opõe à hipótese mais amplamente aceita de que amamos instintivamente. […]

(Tudo sobre o amor, bell hooks, tradução de Stephanie Borges. Editora Elefante, 2021.)

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Giovanna Caleiro

Dedicated to everyone who wonders if I’m writing about them. I am.