Giovanna Caleiro
2 min readJan 30, 2022

nosso problema sempre foi de ordem biológica. eu sou um bicho, você é outro. já achei que você fosse um gato, os movimentos esquivos, a elegância, a individualidade. aprendi a ser mais gato com você e com seus gatos, a respeitar seus limites antes que vocês me mostrassem as garras. em alguns momentos, achei que você fosse um leão, a juba imensa, esse ar de rei decadente, a pompa pra esconder que, no fundo no fundo, você e leões são só gatos de grandes proporções. já achei que você era um bicho extinto, pré-histórico, último sobrevivente de uma espécie, tentando preservar coisas que pra mim não faziam sentido algum. e eu tentando preservar você, evitando a sua extinção completa, a sua fuga, o fim de uma espécie inteira.
você é um bicho, eu sou outro. de vez em quando a gente se entendia em cheiros e línguas e grunhidos, narizes encaixados em lugares improváveis, gostos inéditos, prazeres sujos, a coragem e a delícia de ser bicho. instintos e feromônios e pelos.
quando tentamos organizar tudo em palavras, nos perdemos. lembro de quando colocamos um espelho na frente do maior dos seus gatos e ele nos olhou pelo reflexo com um olhar profundamente humano, que nos assombrou e comoveu por dias. sinto que quando colocamos um espelho diante de nós, nos olhamos pelo reflexo e entendemos tudo: eu e você, bichos distintos. quando vimos nosos reflexo, entendemos que a semelhança em que sempre acreditamos não existia.
nosso problema sempre foi de ordem temporal. se tivéssemos nos conhecido dinossauros, antes do meteoro. se tivéssemos nos conhecido mamutes, até daríamos um jeito de não enroscar nossas presas. se tivéssemos nos conhecido antes que fosse inventada a linguagem. se tivéssemos nos entendido nesse momento sem palavras, como sempre nos entendemos só quando não dependíamos de palavra nenhuma. se tivéssemos nos conhecido já sabendo tudo o que descobrimos só porque nos conhecemos.

Giovanna Caleiro

Dedicated to everyone who wonders if I’m writing about them. I am.